No mundo do desenvolvimento de produtos de tecnologia, algumas vozes competem constantemente por atenção. Vamos priorizar novas features, resolver demandas de suporte, alavancar vendas ou resolver débitos técnicos? Equilibrar essas demandas não é apenas um desafio, é uma arte que pode definir o sucesso ou o fracasso de seu produto.
Lembro de quando ouvi pela primeira vez sobre o trio Hacker, Hipster, Hustler. Dizem que essa é a combinação ideal de co-founders de uma startup. Ouvi isso quando estávamos montando o time de fundadores da Pannacotta, que tinha exatamente essa combinação. Meu co-founder de tecnologia, o Juliano, é o cara de tech que constrói qualquer coisa, incluindo hardware. A Luisa se identificou com o rótulo de Hipster. Podia ser pelos 10 anos de experiência construindo uma consultoria de UX design, mas quem conhece ela sabe que não é só por isso. E para mim sobrou o Hustler. Minha história de anos construindo a minha primeira startup, a Onyo também reforçaram esse perfil. O cara que dá duro para fazer as coisas acontecerem para o negócio.
Quando pensei em como estes papéis influenciam o rumo do seu produto, eu preferi chamá-los de vozes, pois não é necessariamente uma questão de cargos, mas mais da forma de pensar. Na última semana participei de um profundo exercício que envolvia ouvir minhas vozes internas. A grande conclusão foi de que todas elas tem valor e devem ser ouvidas. Mas a cada momento devemos dar as mãos a uma delas e seguir o que ela está dizendo. Agora vamos trazer a bola de volta para o campo do produto e conhecer as vozes que entram em jogo.
As 3 Vozes
Traduzindo para o universo do produto, os nomes mais adequados para as vozes seriam:
A Voz do Negócio
A Voz do Usuário
A Voz da Tecnologia
Como no meu exercício, as três vozes provavelmente existem dentro de você. Dependendo do seu papel ou cargo uma delas provavelmente é ouvida mais alto e com mais frequência. Se você é o CTO, Tech lead ou desenvolvedor, provavelmente é a da tecnologia. Se é o CPO, PM ou PPM, provavelmente é a do usuário. Se é o COO, CRO ou Gerente de Vendas, provavelmente é a do negócio. Agora se você é o CEO, pode depender da sua origem e mindset. Eu era um CEO hustler, mas a voz do usuário também falava bem alto dentro de mim.
A voz pode vir só de dentro. Na Pannacotta, enquanto eramos apenas 3 co-founders, nem tinha de onde mais vir. Mas quando os times crescem, é comum que o CTO passe a maior parte do tempo ouvindo as vozes de outros profissionais de tech, o CPO de pessoas de produto e UX e quem está tentando fazer o negócio crescer também ouça vozes similares. Ecoar o que elas dizem é o que é esperado e dar ouvidos às outras vozes, um desafio maior.
E o que é que elas dizem? Vamos explorar, uma a uma.
A Voz do Negócio
Essa é a voz que defende o crescimento, a receita, a lucratividade. Ela vai entender que o cliente é o centro de tudo, mas não temos que fazer tudo o que ele está pedindo. Senão daríamos o produto de graça e não teria negócio.
Ela vai brigar para direcionar o roadmap para viabilizar integrações com parceiros que possam gerar receita em detrimento de melhorias na experiência do usuário, por exemplo.
Em empresas B2B, ela vai defender features que vão ajudar o produto a vender e, em corporações, quem compra normalmente não é quem usa.
A Voz do Usuário
Essa é a voz que defende a melhor experiência de uso. Um onboarding impecável, boas métricas de conversão, um bom design. Ela vai dar ouvido ao que os usuários estão pedindo para o time de suporte e customer success, trazer benchmarks de produtos maravilhosos de usar e dizer que "o nosso tem que ser igual".
Ela vai brigar por um roadmap que priorize o usuário e vai se irritar com as demandas de negócios que despriorizam o que ele pede ou precisa e com demandas de tecnologia que também não trazem novas funcionalidades para a melhoria da experiência.
A Voz da Tecnologia
Essa é a voz que traz a dimensão técnica. Todo mundo gosta de construir, mas se for bem construído o esforço de manter vai ser menor. Aliás, se já está dando trabalho manter alguma coisa que não foi feita da forma ideal pela correria, essa é a voz que vai brigar para dar uma parada e resolver logo isso.
Ela vai trazer as demandas de ajustes na infraestrutura e de upgrade de plataformas tecnológicas. Quem mais ia pensar em atualizar a versão do banco de dados?
Muitas vezes ela pode soar como a voz do pessimista, afinal, eliminar débito técnico não parece ajudar o negócio a crescer, nem a aumentar a retenção. Mas se a gente não fizer isso…
São só essas?
Gosto de simplificar assim. Podemos pensar que as áreas de Customer Success e Suporte vão ter vozes diferentes da área de produto, uma tentando resolver os problemas do cliente e a outra tentando elevar a experiência para o próximo nível. Mas ambas representam a voz do usuário.
Outra influência forte no roadmap de uma startup é a visão do fundador. Mas essa também vai ter um viés, normalmente mais de negócios ou do usuário. Por isso vamos manter simples assim. 3 é bom, não é demais não!
Como conciliar as vozes
Se não está claro ainda por que conciliar as vozes é importante para os rumos do seu produto e para a sua empresa tenho uma coisa a dizer. Se você passar anos sem ouvir a voz da tecnologia, vários daqueles medos do seu CTO que você minimiza e acha que são puro pessimismo, vão se materializar. E o resultado pode ser desastroso.
Mas o mesmo é verdade para as outras duas. Experimente não ouvir a voz do negócio e logo, logo você não terá mais um. E se os usuários forem abandonados, são eles que vão te abandonar.
Então como é que resolver essa confusão? Vamos por partes.
1- Definir prioridades claras
O primeiro passo é admitir que uma voz vai ser mais escutada que a outra. A razão para isso pode variar de acordo com o momento da empresa (acabamos de receber um round de VC, precisamos crescer como loucos), do perfil da liderança (dá para imaginar que o Bryan Chesky ouve mais a vozinha do usuário no Airbnb) e até da cultura da empresa (na OpenAI o sonho é construir AGI, a tecnologia não só fala mais alto, grita).
Admitir e deixar isso claro para todos é um passo de honestidade e justiça. Se duas das vozes serão consistentemente despreteridas, a mínima demonstração de respeito que seus representantes merecem é saber disso antecipadamente e entender a razão.
Conciliar não é sinônimo de divisão equalitária quando estamos falando das fatias da pizza chamada roadmap de produto. Sejamos claros sobre isso e ninguém vai morrer de fome.
2- Ouvir
Dito isso, nunca deixe de ouvir as três vozes. Os motivos para isso já deixei claros. Agora vamos falar sobre como fazer
Dinâmicas de Tempo Igualitário
Reservar um pequeno espaço de tempo, mas distribuí-lo igualmente entre representantes das 3 vozes pode ser um bom exercício de escuta. Um minuto e meio para cada um, desde que ouvidos com atenção plena já são um ótimo começo.
Acredito que quando o tempo é curtinho assim exigimos poder de síntese e capturamos a essência da mensagem que essa voz quer transmitir.
Esse exercício feito deliberadamente (todos entenderem que é um momento de escuta das três vozes em pé de igualdade) e recorrentemente é muito poderoso.
Dinâmicas de Rotação
Ouvir a voz de tecnologia da pessoa que normalmente é porta-voz do negócio, por exemplo, é um outro poderoso exercício de empatia. As três vozes vivem em todos, mas pode ser que a preocupação tecnológica do CPO seja diferente da do CTO e da do CEO. Pode ser que a contribuição do que o CTO tem a dizer sobre o negócio seja extremamente impactante.
Aqui o objetivo é tentar isolar essas vozes menos dominantes de cada um.
Essa aparente troca de papéis constrói uma visão mais ampla e conecta o time e as suas vozes de forma bem sólida.
3- Medir
Parece que estamos falando de algo extremamente intangível. Só que não. Dá para medir muito claramente a influência das vozes usando "tageamentos" simples.
a) O tamanho da demanda
Qual é o tamanho da dor do usuário que este card do roadmap representa? Digamos que estamos falando de chamados de suporte para mudar um dado que o usuário não consegue alterar sozinho. Quantos chamados foram mês passado? E nesse? Isso é quantificável. Não só o tamanho da demanda, mas também o quanto ela está aumentando.
O mesmo pode ser feito para demandas de tecnologia e de negócios. Pode não valer a pena gastar um tempão levantando esse tamanho, mas eu sou um grande defensor de uma boa estimativa. Ela é sempre infinitamente melhor do que nada, e mais frequentemente do que não, totalmente suficiente.
b) O tamanho do roadmap dedicado a cada uma
A outra medida importante para entender o quanto cada voz está recebendo de atenção é medir o quanto do roadmap é dedicado a ela. Não espere que essa divisão seja equalitária, mas essa medição pode deixar claro também o quanto uma voz está sendo negligenciada. Lembrando, você não quer que os pesadelos do seu CTO virem a sua realidade amanhã.
4- Equilibrar
Encontrar o ponto de equilíbrio, levando em consideração que (1)há uma prioridade do momento, (2) que as vozes foram devidamente ouvidas e (3) o que a medição está dizendo sobre a demanda e sobre o espaço que cada uma efetivamente está ocupando no roadmap é ao mesmo tempo desafiador e natural.
Desafiador porque nada disso é fácil e tudo tem a sua dose de dor. Natural porque o equilíbrio é um resultado quase automático deste esforço. Todos os passos acima representam uma busca por equilíbrio. Com esta intenção, o resultado não pode ser diferente disso.
Conclusão
Eu sou apaixonado por produto. Eu adoro construir e é um grande prazer e responsabilidade liderar times para isso. Mas um dos interesses intrigantes nessa jornada é o entendimento das dinâmicas entre pessoas e como elas impactam o negócio. Elas são determinantes para o sucesso da sua empresa em todas as áreas, e no produto não poderia ser diferente.
A metáfora das vozes é um presente que recebi para o entendimento destas dinâmicas e para resolver as questões que normalmente ficam ocultas nelas. Agora este presente é seu.