A criatura está criando!
Como o surgimento da IA generativa surpreendeu a humanidade e o que fazer agora.
O futuro não é mais como era antigamente. Cresci assistindo os Jetsons e imaginando uma vida adulta propelida por carros voadores e com a conveniência de robôs humanóides assumindo as tarefas da casa.
Acompanhando o mundo da tecnologia de perto, constantemente me lembro da frase de William Gibson: "o futuro já está aqui, só não está igualmente distribuído." Há mais de 250 companhias no mundo desenvolvendo protótipos de carros voadores, mais de 100 modelos de andróides humanóides e, a cada ano mais de 15 milhões de novos robôs domésticos já assumem tarefas da casa, ainda que tenham a aparência de uma grande lata de atum.
Surpresa!
Ainda assim, os últimos meses foram de enorme surpresa para os milhões de pessoas que começaram a usar a inteligência artificial generativa, da qual o ChatGPT é o exemplo mais famoso por chegar a um milhão de usuários em 5 dias. A surpresa vem da repentina capacidade da máquina de realizar algo que julgávamos ser inerentemente humano: criar! Textos, imagens, vídeos, música. Tudo isso hoje pode ser gerado pelos novos modelos de IA.
Essa capacidade encanta ao mesmo tempo que incomoda, em especial à classe criativa, que se sente ameaçada pela máquina. O resultado já ganha as notícias. Em maio os roteiristas de Hollywood iniciaram uma greve que durou 148 dias. Ações judiciais contra empresas que desenvolvem grandes modelos de linguagem, como a ação movida por um grupo de artistas contra as empresas Stability AI e Midjourney, lançam luz sobre a afirmação de protesto: a máquina não está criando, está "roubando".
Existem leis e acordos internacionais que regem as infrações de propriedade intelectual. Em um espectro amplo de casos, há um espaço onde pode não ser óbvio diferenciar uma inspiração nas idéias e criações de terceiros de um plágio, como no recente episódio da campanha "Magia Amarela" da Bauducco. Mas em um dos seus extremos isso fica cristalino e é de fácil julgamento. No entanto, o mais interessante é pensar que sim, a máquina está criando. E para entender por que, vale revisitar a origem da IA generativa.
A Origem da IA Generativa
Geoffrey Hinton, é considerado por muitos o "padrinho" da IA . Com esse título é fácil imaginar ele como um nerd da programação, mas, surpresa: ele é um psicólogo cognitivo. Seus estudos na década de 80 se propunham a imitar o comportamento dos neurônios usando computadores. Nossas células neurais se comunicam através de sinapses, que criam uma relação de causa e efeito entre um estímulo e uma resposta. Provocar a conexão de neurônios virtuais poderia fazer as máquinas relacionarem dados de forma similar ao cérebro humano.
O trabalho de Hilton, hoje conhecido como a disciplina de redes neurais, era considerado um ramo da biologia, excluído pelo círculo de estudiosos da inteligência artificial. Na época, IA era baseada em métodos fundamentalmente estruturados, como árvores de decisão.
A criatura está criando!
Avancemos 40 anos e a capacidade computacional evoluiu tanto que um iPhone hoje é centenas de milhares de vezes mais rápido que o computador que levou o homem à Lua. E um servidor básico na nuvem? Pode ser ainda mais potente. As redes neurais agora realizam feitos antes inimagináveis. Essencialmente, o que esses algoritmos estão fazendo são sinapses. É para isso que foram projetados.
Ora, como os seres humanos criam? Nossa 'banda cerebral' consciente opera com uma limitação de cerca de 60 bits por segundo, mas o processamento inconsciente explode para milhões de bits por segundo. Coletamos um oceano de informações das quais muitas vezes nem temos consciência. E de repente, "bum", essas correntes subcutâneas se conectam em uma nova idéia "original". Sim, entre aspas, porque nenhuma idéia é realmente original, todas nascem da máquina combinatória neural. E essa capacidade de combinação e processamento, antes restrita à nossa caixa craniana, agora está disponível também no hack de servidores mais próximo. A criatura está criando!
Por que agora?
E porque isso aconteceu antes que toda família de classe média pudesse ter uma Rose, a robô dos Jetsons que cuida das tarefas domésticas? Minha jornada empreendedora me ensinou a duras penas como é mais difícil mover átomos que bits. Eu costumava dizer: "tudo o que é fluxo de informação será digitalizado, a velocidade em que isso vai acontecer vai depender apenas do potencial de valor criado por essa digitalização". E lá fui eu criar uma startup para digitalizar o fluxo de pedidos em restaurantes e descobrir como é desafiador fazer informação virar comida quente na hora certa.
Nem eu, confesso, imaginava que o fluxo de informação entre neurônios seria um exemplo cabal dessa minha própria profecia. E lá estão os restaurantes do mundo físico, disputando clientes pelo atendimento humano diferenciado para seus clientes, enquanto a máquina começou a cozinhar conteúdo novo de diferentes sabores em formato digital.
A verdade é que mover átomos de maneira efetiva e segura não é apenas uma questão de engenharia, mas também de linguagem — a ponte entre intenção e ação. Pense nos carros autônomos; antes de colocar em movimento uma tonelada de metal, eles devem decifrar o 'vocabulário' do mundo — pedestres, placas, ruas — e traduzi-lo em decisões seguras e eficazes na perspectiva humana. Um carro autônomo consegue identificar mais de 100 objetos simultaneamente à sua volta, mas para aprender a traduzir o "vocabulário do mundo" as o desenvolvimento de carros autônomos demanda percorrer milhões de milhas absorvendo terabytes de dados visuais e sensoriais a cada milha.
Linguagem: o elo fundamental
A linguagem é a fundação por trás da nossa forma de pensar, um elo crítico para nossas decisões conscientes e inconscientes do dia a dia. Ela pode assumir diversas formas: visual, escrita e verbal. Ao dirigir, nosso cérebro traduz uma imagem de uma pessoa prestes a atravessar a rua em um comando para parar o carro. Um inseto passaria pelo mesmo processo de tradução, com um resultado diferente.
Essa é também a fundação dos novos modelos de IA que surpreenderam o mundo: os chamados LLMs (Large Language Models, ou Grandes Modelos de Linguagem). Sua essência é entender a linguagem e prever a resposta mais provável, também no formato de linguagem. Podem receber texto, imagem ou som e também produzir a resposta em texto, em imagem em som. A OpenAI, empresa que desenvolve o ChatGPT, usa a mesma tecnologia, chamada de "transformer", para desenvolver algoritmos de geração de texto, imagem e voz. É tudo linguagem.
Ameaça ou potencialidade?
A liberação dessa capacidade para além do confinamento dos 1400 centímetros cúbicos do crânio humano para os neurônios digitais espalhados pelos 75 milhões de metros quadrados ocupados pelos datacenters do mundo dá origem a uma capacidade criativa jamais sonhada pela raça humana. Podemos olhar isso como uma ameaça, em especial se ficarmos presos à noção de que a criatividade seria o que diferencia os seres humanos das máquinas.
Não é! É a intencionalidade. Mesmo que as máquinas comecem a tomar decisões (como a de parar ou não na faixa de pedestres), elas terão sido treinadas para isso pelas nossas intenções.
Olhar com uma nova lente para nosso diferencial humano permite transformar a capacidade ameaçadora de destruição criativa em potencializadora das nossas intenções. Elas representam o real recurso crítico humano. Nas nossas vidas pessoais e nas nossas empresas, ter clareza dos nossos objetivos e nos alinharmos em direção a eles é o que elimina a ameaça do nosso futuro e faz dele brilhante.
Como usar esse potencial
Somos uma espécie tribal, há mais de 10.000 anos nos unimos para realizar nosso propósito e juntos criamos soluções para os nossos problemas e atingimos coisas incríveis que sozinhos não poderíamos. Ao longo do tempo construímos milhões de organizações de todos os tipos: governos, empresas, ONGs, associações, cooperativas. Gastamos horas a cada dia usando linguagem para convergir nossas intenções e transformá-las em ações concretas.
Agora nossa tribo dispõe de uma ferramenta capaz de analisar trilhões de pontos de dados para descobrir padrões que podem ajudar a solucionar nossos maiores problemas como mudanças climáticas, o combate ao terrorismo, a desigualdade e a cura de doenças. Já identificamos moléculas de medicamentos potenciais mil vezes mais rápido usando IA. Sim, a criatura está criando e se isso é bom ou ruim depende apenas de como usaremos essa capacidade. Vamos canalizar este poder para superar nossos reais desafios, combater as verdadeiras ameaças à nossa existência e realizar feitos sobre os quais só ousávamos sonhar. O futuro que vamos criar, só depende das nossas intenções.